sexta-feira, 28 de junho de 2013

Plágio (1): Balada dos dois pilantras do subúrbio*

Eram dois pilantras
famosos de longa data:
um chamado Aristeu
o outro apelidado Mãozinha.
Os trinta do primeira
eram pouco para explicar
tamanha vontade de roubar
Os dezessete do parceiro
foram o suficiente para lhe deixar
cicatrizes por todo o corpo.
Sem terem nada de geniais
não chegavam a ser sequer espertos
mas eram rápidos, loquazes
no pouco que sabiam fazer.
Legado não tinham
pois não chegaram a conhecer seus pais
ambos órfãos que eram.
O que sabe de ouvir falar
é que os pais de Aristeu
eram funcionários públicos exemplares
e os de Mãozinha
uma garota de programa e seu cafetão.
Talvez daí advenha o motivo pelo qual
Mãozinha não abra mão da violência
enquanto Aristeu sempre que pode
evita agressões físicas
e prefere utilizar seu discurso
empolado e trambiqueiro.
Aristeu tinha um cacoete
que aporrinhava o seu cúmplice
uma espécie de ruído feito com a boca
que fazia Mãozinha acordar assustado
várias vezes durante a noite.
O maior sonho de Mãozinho
era ser jogador do Flamengo
sonho nunca concretizado
por causa de um problema nos rins
que o impediu de fazer exercícios físicos
durante toda a sua vida.
Um mancava da perna
o outro gaguejava volta e meia
em fins de frase.
Ambos: criminosos.
Não por necessidade
como muitos que se vêem por aí
mas por vocação
por acreditarem que aquele ramo de negócios
lhes traria prestígio e grana fácil.

Moravam num cortiço
que dava até nojo chamar
de humilde residência.
Sujeira pra todos os lados
gente feia desbocada
sem nenhuma assepsia.
Quando a grana do aluguel faltava
entravam pelos fundos
por um terreno baldio emporcalhado
para que seu Ariclenes não os visse
e viesse correndo cobrar o mês.
A moradora do apartamento 403
dividia a cama com ambos
em noites intercaladas:
segunda, quarta e sexta um
terça, quinta e sábado outro
domingo de folga
que ninguém é de ferro.
Vida dura essa
mas há que se levar em consideração
que nunca faltou comida na mesa
e uma muda de roupa limpa
para esses dois marmanjos.

A fama da dupla se espalhou pela cidade
depois da quinta-feira de sangue
como ficou conhecido o dia
em que mataram o Doutro Lísias,
homem de respeito e posses
mas com um terrível vício em carteado.
Apostou demais e contra as pessoas erradas.
Deu no que deu: execução no meio da rua
na frente de toda a população.
Pensaram em sumir por uns tempos
mas "quer saber?"", pensaram,
"Que se dane. Ou a gente se impõe
ou esse povo monta nas costas da gente".
Ficaram.
E com eles nasceu o medo e a apreensão
entre os moradores do subúrbio.
Houve várias tentativas de prendê-los
e contam histórias
- histórias essas que já viraram
verdadeiras lendas urbanas -
que vários destacamentos policiais
pediram transferência para outras localidades
para não terem que enfrentar a dupla.
Se é fato ou mito?
Quem há de saber!

Porém nem tudo foram glórias
para esses dois sobreviventes:
Mãozinha chegou a perder um baço
após um troca de tiros com Frederico Sodré,
matador profissional de primeira categoria
contratado por alguns comerciantes
para dar cabo da dupla infame
e Aristeu tinha estilhaços de granada
espalhados pelo corpo
e uma orelha destruída por ácido
jogado nele por uma de suas amantes,
a voraz Angelita,
mulher de pulso forte
e que não tolerava ser usada e descartada
por homem nenhum.
Á parte pequenas derrotas,
transformaram-se em lenda muito facilmente
(até pela falta de assunto que havia no local na época).

Foram quinze anos
de crimes quase cinematográficos
escapadas sublimes
chantagens extraordinárias
e subornos capazes de levar ao ódio
chefes de polícia que não admitiam
- sob hipótese alguma -
que algum agente da corporação
se submetesse a liberá-los
em troca de qualquer quantia.
Mas a farra um dia tinha que acabar.
Como todos os grandes artistas que se prezem
por trás de todo artífice do crime
há um clímax devastador e impiedoso.
E com Aristeu e Mãozinha
não foi diferente.
E a derrota deles teve nome:
Astrogildo Humberto Peçanha,
mais conhecido pelos amigos
como Nonô Peçanha:
um homem simples
de atitudes serenas
nunca mexeu com ninguém na cidade
e o pouco que se sabia sobre ele
era que possuía uma loja de ferragens no centro
e era casado com Idalina,
mulher rigorosamente religiosa
(palavra de alguns populares)
que quando a viam na rua
estava dentro de algum templo.

Por trás de toda essa pacificidade
havia um segredo:
se havia algo que Nonô Peçanha não tolerava
era que não mexessem naquilo que era seu.
"Desse ao respeito, se quiser o mesmo para ti",
sempre foi seu lema de cabeceira.
Até que Aristeu e Mãozinha
entraram em sua vida
(quer dizer, na cama de sua esposa).
Nem ela sobreviveu a fúria de Nonô:
foi encontrada enforcada
no ventilador de teto da sala.
A caçada aos homens "que se desonraram sua mulher",
como repetidamente falou às autoridades,
durou um ano e meio.
Um ano e meio de rastreamentos
e pistas em falsos
e gente que atrapalhou sua missão
fornecendo informações erradas.
Contudo, nada abateu Nonô Peçanha
e ele persistiu e persistiu
e orou a Deus
e orou
e orou
e orou com cada vez mais força e vontade
e exigiu que o criador
colocasse em suas mãos
aqueles duas criaturas desnaturadas.
E assim se fez.

Naquela sexta-feira,
13 de Abril,
exatamente às quatro horas da tarde,
Nonô Peçanha encontrou Aristeu e Mãozinha
tomando todas num barzinho caindo aos pedaços
lá pros lados de Madureira
reduto do samba e da folia.
Naquela tarde o som dos tamborins
deu lugar aos disparos da 45 de Nonô
que ferozmente atravessou os corpos
dos dois "difamadores da moral alheia"
(Pelo que ficou registrado nos jornais,
essas teriam sido as últimas palavras
proferidas por Peçanha antes de atirar
contra a dupla de criminosos).
Alguns comentam que ele próprio
teria feito o enterro da dupla.
Nunca mais os corpos de Aristeu e Mãozinha
foram visto pelos moradores da região.


A fama persiste?
Mas do que isso:
gerou um roteiro de cinema
cujo filme chegou a concorrer
ao Festival de Sundance.
Fala-se que a moradora do 403
teve um filho de um dos dois
(só não se sabe quem)
e que ele, aos 15 anos,
teria fugido do subúrbio
acompanhado de uma menina da mesma idade
de nome Carolina.
Tem quem fale até numa nova dupla,
a Bonnie & Clyde do subúrbio.
Será verdade
ou tudo não passa de mero boato?
Aliás,
não será toda essa história
um grande e incoerente boato?
Vá saber.
O tempo dirá.
Cabe ao narrador somente
relatar os fatos.
Já a interpretação fiel
e a veracidade dos mesmos...


* (Livremente inspirada em "Balada das duas mocinhas de Botafogo", de Vinicius de Moraes).

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