quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Noé


(Praça da república. Dez horas da manhã)

- Você tinha que tocar nesse assunto, não é mesmo?

- Tá falando do quê?

- Da droga do Noé.

- O que é que tem o...?

- Como assim o que é que tem? E você ainda pergunta? Esse cara foi o maior pilantra da história da humanidade.

- Como assim?

- Todo mundo chama esse infeliz de sábio, de humilde, que ele era humano até a raiz do cabelo, no entanto o que foi que ele construiu de bom?

- Ué, ele fez a arca, previu o dilúvio e...

- Não, meu caro, nada disso. Ele foi egoísta e praticou o primeiro nepotismo descarado da história mundial.

- O primeiro...? Como é que é?

- É isso mesmo que você ouviu. Muito malandro o senhor Noé. Levou um par de cada animal e a família dele próprio como única representante da classe humano.

- Mas...

- Não tem mais nem menos, Jonas! Grandesíssimo filho da puta o Nóe.

- Você não entende! Já imaginou ter que levar toda a humanidade dentro da barca. Imagine o tamanho que teria essa embarcação e quantos anos levaria para ficar pronta?

- Não me interessa.

- Ah muito cômodo pra você dizer isso, Abreu.

- Cômodo porra nenhuma. Então não levasse ninguém. Ou deixasse os animais.

- Quer dizer que os animais que se danem!

- Prefere a sua vida a de um camelo, uma águia, um porco? Fique à vontade. Eu não, meu amigo.

- Você é um brincalhão, Abreu!

- Eu? Um brincalhão?

- É

- É isso que eu não aceito nessas teorias de apocalipse...

- O quê?

- Essa mania de sempre ter de sobreviver alguém pra contar a história. Que nem aqueles filmes cínicos daquele diretor hollywoodiano... como é o nome dele mesmo? O Emmerit sei-lá-das-quantas?

- O Roland Emmerich?

- Esse cara aí. Ele já cria a hipótese dos sobreviventes recomeçarem tudo do zero antes mesmo de escrever o restante do roteiro. Um brincalhão esse cara!

- O cara quer passar uma imagem positiva, de esperança...

- O cacete. Ele quer é promover a hipocrisia. Fim do mundo é fim do mundo, Jonas. Pra mim, pra você, nossas esposas, nossos filhos, o dono do bar na esquina da sua casa, o leiteiro, o padeiro, o advogado corrupto que roubou dinheiro público, até pra sua amante latina.

- Ei, que papo é esse de amante latina?

- Ah não ferra, Jonas. Vai querer enganar a mim? Você sabe do que eu tô falando. Aquela morena com quem você estava no La Mole na última sexta-feira. de vestido preto, maravilhosa, tatuagem de borboleta no ombro. Você sabe!

- Merda! Como é que você sabe disso?

- Também. Fica dando mole. Jonas, aprende uma coisa: mulher sobressalente você leva pra lugares diferentes de onde leva sua mulher e filhos. Amante, meu amigo, custa grana. Por isso que a minha última tem mais de oito anos.

- E eu pensando que estava sendo discreto...

- Esquece isso agora, eu tava falando da porcaria do fim do mundo, lembra?

- Cara, isso é uma questão de ponto de vista. Você tem o seu e eu...

- E você é um demagogo igual a torcida do flamengo e adjacências.

- Ô não vem ofender, não!

- É isso mesmo que você ouviu. Todo mundo quer é se dar bem, se salvar e o resto do mundo que se dane. Tá pensando que eu não manjo qual é a dessa hipocrisia.

- Olha, Abreu, vou indo nessa antes que eu feche a mão na tua cara.

(Jonas parte indignado)

- Ah seu pilantra. Vai mesmo, seu idiota! Você é igual a todo mundo: não gosta de ouvir a verdade. Corre mesmo, Zé Mané, e abre o olho com aquela morena pra não tomar um toco, seu babaca.

(Abreu continou falando sozinho na praça por mais meia hora, até que um casal de guardas municipais o levou para um abrigo de indigentes. Ele está lá até agora tentando provar que não é maluco nem um sem eira nem beira. Ainda não conseguiu convencer o administrador do abrigo).

Nenhum comentário: